sábado, 16 de agosto de 2014

Vestidos

Feito sombra que, perdido o umbral, vira gesto no ar,
sobre o meu gesto se lança a sua palma,
são os meus braços herdeiros do seu manto.
A minha inspiração expele o seu hálito;
a mão, mesmo aberta, se entrelaça.

De um novo ângulo fito as estrelas.
As maçãs do rosto recebem nova brisa.
Reconheço o olhar que agora abraça a chuva,
bem como um quê da vocação para o que não enxergo.

Com a ousadia dos íntimos e cúmplices,
acomodo as diferenças e atritos,
grato por não se explicarem.
Nada é mais livre do que as pontas soltas.

Sigo fecundo de pausas e vírgulas.
Nu, vou vestido de par.
O fôlego que me tomou agora repõe do próprio.
Sua grafia declara o meu afeto.

E é tamanha a comunhão de autorias,
tão farta é a troca
que já não sei quem reparou primeiro
que a alegria, como a dor, não dá aviso.

(Daí o espanto que vem com o gosto
de sentir no meu rosto
o nascer do seu sorriso)

RF
12/08/2014

sábado, 26 de julho de 2014

Seio Mundo

Seio mundo,
Seio tempo,
Saber, arte materna
que sob o peito dos homens se faz pedra.

O branco das manhãs em cegueira láctea,
ausência líquida povoando as distâncias,
anéis e nuvens em ninhos suspensos.

E, sobre a terra, auges secretos
de idas e vindas entre a alma
e as enseadas da pele,
por vezes brutas.

Seio mundo,
Seio tempo,
Saber denso, saber a hora,
que as vontades crepitam no teto aberto que nos guarda.

E o braço da dor encolhe no nado,
e viagens desertas rumo a um tecelão de nomes
descobrem não mais que seu atraso
e um mural de dúvidas.

Sabe-se vago, sabe-se sólido
o saber que toca os lábios como o idioma dos vivos,
primeiro beijo urgente e esquecido
entre as névoas macias e mudas.

Seio mundo,
Seio tempo,
Sei que o viver se precipita do alto e à frente
quando no verso e no fôlego o chamo às planícies sem idade da carne.

O resto, eu sei,
fez-se pedra.

RF
17/07/2014
aprox. 20h07

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Espero teus Cílios

Espero teus cílios mentirem sobre a madrugada,
condensando no brilho insone
o riso das crianças eternas.

Espero teus cílios desvelarem as alvoradas,
borbotões mudos de plenitude e unidade,
canais dos anseios desatados
em desaguar de crepúsculo.

Espero teus cílios, senhores das belas ou duras brevidades,
nas melodias presentes e etéreas
onde habitam tua forma primeira
e minha paisagem perpétua.

Espero teus cílios na sede das pálpebras,
abraço os ritos da divisão
e o teu sorriso me priva
da angústia do finito.

Paira suspenso o saber
de que em nós há um ventre azul
e também
um terço de poros e pranto.

Espero teus cílios,
Aberto.

RF
16/05/2014

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Um Pequeno Poema

Deus fez um pequeno poema quando a gente se conheceu.
Não o mediu em estrofes, mas em metros:
Tantos quantos houvesse
Em uma volta e meia
E uma meia-volta
(Ou assim me pareceu).

Não se ocupou de rigor formal:
quais e quantas sílabas
caberiam nos olhares, afinal?
Quantas regras não havia
ao lhe ver primeiro as costas?
Por onde a métrica corria
entre nossas vontades opostas?

Até hoje, Lhe agradeço
o desapego aos fios narrativos:
meus pés pediam a casa;
seu repouso era um trajeto interrompido
(Só hoje vejo
o humor tecido à ironia
de ter sido semeado o desejo
onde ninguém fez o que queria).

Na fartura de elementos fantásticos,
o escuro dos seus olhos esverdeou o dourado da tarde,
o tímido se vestiu de ávido,
o acaso virou ao avesso, seu engenho desnudo.
E de tudo fez-se um todo cadenciado,
improvável e melodioso,
na releitura prazeroso
e por ela renovado.

Outras coisas queria lhe falar noutros poemas,
porém este me escolheu -
tal qual escolhidos fomos para tema
de um pequeno poema de Deus.

domingo, 23 de março de 2014

Frestas

Tenho procurado a luz por frestas
Um traço na curva da silhueta de Deus,
O feixe na sombra da porta entreaberta,
O prisma roubado que o gigante acendeu.

Tenho buscado o ar por frestas
O casco de um navio parado no chão,
O caco de vidro de improvável janela,
O sim que se extrai espremendo-se o não.

E no entanto sou sentinela
O fôlego firme afia a visão
A brisa me informa, o brilho me espera
Onde tudo são frestas, nada é vão.

Tenho invadido lugares por frestas
Ralo, assoalho, duto, cancela,
Quarto, palácio, aviso de despejo,
O seu desejo, uma caravela.

Tenho dado vazão por frestas
Os raros momentos sem companhia,
O olhar montado em domado sorriso,
O sono, abandono e acolhida do dia.

E no entanto sigo indiviso
Por sobre o rompante eu sou união
Ser quase sereno em chegada e partida
Onde tudo são frestas, nada é vão.

E serei grato às minhas arestas
Em travessias estreitas, origem e destino
Mensageiras perfeitas do aviso ferino
De que todo limite liberta.

RF

(22/03/2014, 02h45 aprox.
23/03/2014, 22h49)

domingo, 19 de janeiro de 2014

Quase Bom

Dor ou alívio é a nascente,
Tudo de dentro é afluente,
Não se é fluente no idioma que é sem voz.

Não há resgate, não há rede,
Contorna muros e paredes,
Tem no silêncio mais sereno um algoz.

E quando chega rente aos olhos e deságua finalmente,
Debate-se e soluça, é sem nota o seu tom.

Depois de tanta luta, quase que por acidente.
É quase bom.

RF
19/01/2014
21h41