quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Alma Antiga

Somos almas antigas.
Estradas que os olhos escreveram corpo adentro.
Episódios que digerimos para o mundo.
Depoimentos de quem não somos.

Não conhecemos a exaustão, apesar da curva dos verbos.
Os lugares que deixamos esmaecem com calma.
Temos o alívio de não sermos donos de nada.
A idade das retinas viu passar
o tempo das coisas que envelhecem.

Cada dia nos ensinou
a remover das coisas a pele dos dias,
a querer a nudez despetalada das coisas.
O abraço que descostura,
o passo que entalha,
a areia que grava.
Aprendi a escrever seu nome na memória das pipas.

Quando sonhei ser eterno feixe paralelo,
deixei afundar o peso da linha reta
(nunca me faltou gratidão no escuro).
Mas vieram as maravilhas tecidas a fio de voz.
No desvio, desejei seus corredores.

Tempos cruzados, silêncio sereno e longevo.
Retratos pulsam e contraem distâncias.
Cores ancestrais acolhem a sépia
do idioma das nossas horas.

Nossas almas antigas
vivem de saber
que todas as coisas
são primeiras.

RF
12/06/2015
19h24

sábado, 7 de março de 2015

Dois Balões Azuis (Valentina)

Pouco a pouco, passo torto a vagar,
meu corpo eleito celeste encontra o pouso no ar.
Paira o riso, o aplauso desce ao chão,
sem medo, sobe o alívio, ave de pés e mãos.

E dos olhos da plateia a assistir
surgem crianças serenas - seu brilho chega aqui:
a acolhida que me envolve os braços nus.
Nos ombros, o afago invisível
de dois balões azuis.

Algo errante em mim segue sem saber,
nada me arranha o instante, o peso se faz ascender
Mesmo o tempo se encanta e cede ao voo
pausa perante o eterno, segue por onde eu vou.

Lentamente, os acenos ao final
Mergulham como um remo em marés na vertical
sobre as vestes, sobre o vento, sob a luz.
Nos ombros, o afago invisível
de dois balões azuis.

Gravidade é dança que não espera, não
se desvela, então, dos casulos dos olhos meus
Respira e se atrasa sem pedir perdão
pois temer é viver suspenso
e morrer é sonhar de fora pra dentro.

Pouco a pouco, passo torto a vagar,
meu corpo eleito celeste encontra o pouso no ar
sobre as vestes, sobre o vento, sob a luz.
Nos ombros, o afago invisível
de dois balões azuis.

RF
05/03/2015
circa 23h30

Répteis

Neste lugar que nos recebe de passagem,
onde tudo fala e transborda,
onde corpos não conhecem portas
que comportem o direito de passar,
não sei por que você tomou tal forma,
não sei quando você retorna
e não quero perguntar.

Como répteis que, afoitos, antecipam terremotos,
você vem e anuncia o piso instável.

Não julgo seus espelhos, nem divido os meus.
Não acuso as novidades, não culpo o que aconteceu.
Se o ar é reflexo, se vidro rachado,
se vê sua imagem e volta transformado,
esta terra consentiu, jamais eu.

Como aves que voam baixo e antecipam temporais,
você diz que de cima o alívio não vem mais.

Este lugar que nos toma entre peles, escamas, pelagens e penas,
roupagens estranhas e paisagens amenas,
sempre nos define, jamais nos sustenta.
Figuras várias para cada passagem,
águas em transe, ligeiras folhagens,
o caminho se alarga, entranha e inventa.

Com os meus ossos que não sentem nem se elevam,
lhe aguardo para dizer
que estou cansado.

RF
02/12/2014
13h31

sábado, 16 de agosto de 2014

Vestidos

Feito sombra que, perdido o umbral, vira gesto no ar,
sobre o meu gesto se lança a sua palma,
são os meus braços herdeiros do seu manto.
A minha inspiração expele o seu hálito;
a mão, mesmo aberta, se entrelaça.

De um novo ângulo fito as estrelas.
As maçãs do rosto recebem nova brisa.
Reconheço o olhar que agora abraça a chuva,
bem como um quê da vocação para o que não enxergo.

Com a ousadia dos íntimos e cúmplices,
acomodo as diferenças e atritos,
grato por não se explicarem.
Nada é mais livre do que as pontas soltas.

Sigo fecundo de pausas e vírgulas.
Nu, vou vestido de par.
O fôlego que me tomou agora repõe do próprio.
Sua grafia declara o meu afeto.

E é tamanha a comunhão de autorias,
tão farta é a troca
que já não sei quem reparou primeiro
que a alegria, como a dor, não dá aviso.

(Daí o espanto que vem com o gosto
de sentir no meu rosto
o nascer do seu sorriso)

RF
12/08/2014

sábado, 26 de julho de 2014

Seio Mundo

Seio mundo,
Seio tempo,
Saber, arte materna
que sob o peito dos homens se faz pedra.

O branco das manhãs em cegueira láctea,
ausência líquida povoando as distâncias,
anéis e nuvens em ninhos suspensos.

E, sobre a terra, auges secretos
de idas e vindas entre a alma
e as enseadas da pele,
por vezes brutas.

Seio mundo,
Seio tempo,
Saber denso, saber a hora,
que as vontades crepitam no teto aberto que nos guarda.

E o braço da dor encolhe no nado,
e viagens desertas rumo a um tecelão de nomes
descobrem não mais que seu atraso
e um mural de dúvidas.

Sabe-se vago, sabe-se sólido
o saber que toca os lábios como o idioma dos vivos,
primeiro beijo urgente e esquecido
entre as névoas macias e mudas.

Seio mundo,
Seio tempo,
Sei que o viver se precipita do alto e à frente
quando no verso e no fôlego o chamo às planícies sem idade da carne.

O resto, eu sei,
fez-se pedra.

RF
17/07/2014
aprox. 20h07

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Espero teus Cílios

Espero teus cílios mentirem sobre a madrugada,
condensando no brilho insone
o riso das crianças eternas.

Espero teus cílios desvelarem as alvoradas,
borbotões mudos de plenitude e unidade,
canais dos anseios desatados
em desaguar de crepúsculo.

Espero teus cílios, senhores das belas ou duras brevidades,
nas melodias presentes e etéreas
onde habitam tua forma primeira
e minha paisagem perpétua.

Espero teus cílios na sede das pálpebras,
abraço os ritos da divisão
e o teu sorriso me priva
da angústia do finito.

Paira suspenso o saber
de que em nós há um ventre azul
e também
um terço de poros e pranto.

Espero teus cílios,
Aberto.

RF
16/05/2014

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Um Pequeno Poema

Deus fez um pequeno poema quando a gente se conheceu.
Não o mediu em estrofes, mas em metros:
Tantos quantos houvesse
Em uma volta e meia
E uma meia-volta
(Ou assim me pareceu).

Não se ocupou de rigor formal:
quais e quantas sílabas
caberiam nos olhares, afinal?
Quantas regras não havia
ao lhe ver primeiro as costas?
Por onde a métrica corria
entre nossas vontades opostas?

Até hoje, Lhe agradeço
o desapego aos fios narrativos:
meus pés pediam a casa;
seu repouso era um trajeto interrompido
(Só hoje vejo
o humor tecido à ironia
de ter sido semeado o desejo
onde ninguém fez o que queria).

Na fartura de elementos fantásticos,
o escuro dos seus olhos esverdeou o dourado da tarde,
o tímido se vestiu de ávido,
o acaso virou ao avesso, seu engenho desnudo.
E de tudo fez-se um todo cadenciado,
improvável e melodioso,
na releitura prazeroso
e por ela renovado.

Outras coisas queria lhe falar noutros poemas,
porém este me escolheu -
tal qual escolhidos fomos para tema
de um pequeno poema de Deus.